História e curiosidades do pescado “cozido” no limão

História e curiosidades do pescado “cozido” no limão


A receita básica criada por povos americanos pré-colonização foi enriquecida por influências dos espanhóis e, mais tarde, dos chineses e japoneses. Embora a paternidade do ceviche seja reivindicada pelos peruanos, país onde o prato foi declarado Patrimônio Cultural em 2004, não há um consenso sobre sua origem. Algumas hipóteses apontam que antigos nativos da costa do Oceano Pacífico tinham o costume de comer peixe cru temperado com ají, uma pimenta local, muito antes da chegada dos colonizadores europeus. No preparo, incluíam também suco de tumbo, uma fruta ácida da família do maracujá, ou a bebida chicha, um fermentado feito de milho.


Essa receita original sofreu influências significativas com a chegada dos colonizadores espanhóis ao continente americano. Eles trouxeram os sabores cítricos de limões e laranjas e as cebolas, que vieram enriquecer o prato preparado pelos peruanos. Muitos apontam esse marco como o verdadeiro nascimento do ceviche, como explicam a jornalista Patricia Moll e o chef colombiano Dagoberto Torres no livro Ceviche – do Pacífico para o mundo (editora Senac): “Uma das versões sobre a origem do prato é de que ele teria sido preparado pela primeira vez por escravas mouras, amas da casa ou concubinas dos colonizadores. Elas teriam misturado ao peixe cru, já muito consumido pelos pré-hispânicos, o limão, que veio da Europa, num processo semelhante ao preparo do escabeche, prato de origem árabe, de peixe marinado com vinagre e cebola”. A diferença, esclarece o chef americano-cubano Douglas Rodriguez, no livro The great ceviches book (Ten Speed Press, sem tradução no Brasil), é que o escabeche é refogado antes de ser marinado.


Outra vertente credita a invenção do pato a marinheiros espanhóis ou piratas ingleses. Isso porque estes tinham no peixe fresco uma importante fonte de alimentação e carregavam nos navios grande quantidade de limões, usados para combater o escorbuto, doença bastante comum na época. Daí teria surgido a ideia de juntar os dois, usando o suco da fruta para conservar o pescado.


Rodriguez ressalta ainda que outros imigrantes meteram a colher nesse preparo: com a chegada ao Peru dos chineses (1849) e japoneses (1899), novos ingredientes foram incorporados, como gengibre e molho de soja, ampliando a variedade do prato.


Variações à parte, o conceito por trás do prato é um só. Como explica o chef brasileiro Alex Atala, no prefácio do livro Ceviche – do Pacífico para o mundo: “é o limão que cozinha o peixe, arranca seu sabor e vai formar, junto com a cebola, a pimenta e o coentro, um sabor único, um intercâmbio entre todos os ingredientes”. Em tempo: o livro conta ainda com outra contribuição de Atala, a receita do ceviche de flores com vinagrete de flor de laranjeira.


Leite de tigre


O chef Douglas Rodriguez lembra que a adoção do ceviche como refeição completa nasceu nas cevicherias da costa do Pacífico, desde a Argentina até o México. Por lá, essas casas são muito procuradas por quem está encerrando a balada e quer repor as energias com uma boa porção do prato. Ele explica que, nesses casos, o pescado marinado “funciona como um remédio refrescante e apropriado depois de muitas bebidas”. Em outras palavras: “leite de tigre”, como é chamado o suco que se forma com a marinada, é tido como um “santo remédio” para curar ressacas.


Esse “poder” restaurador do ceviche também é exaltado pelo chef colombiano Dagoberto Torres no livro que assina com a Patrícia Moll: “Cevicherias seguem ao pé da letra o conceito básico dos restaurantes: restaurar energias, alma e espírito”. Ele chegou a essa conclusão depois de uma experiência inesquecível numa cevicheria de Bogotá, Colômbia, como descreve no livro: “Enquanto eu comia e tomava minha cerveja, fiquei reparando na enorme quantidade de pessoas que entravam e saíam de lá. Era gente que vinha direto da noite a fim de recuperar os ânimos antes de voltar para casa, outros que queriam comer algo bem energético para continuar sua festa, e também trabalhadores, como policiais e taxistas, que passavam ali para comer um ‘combo’ de suco e ceviche antes de começarem seu dia”.


Em terras brasileiras, o ceviche começou a conquistar fãs há cerca de duas décadas, em pequenos restaurantes de comunidades de países da américa latina ou como entrada em bufês de festas e restaurantes sofisticados. Os primeiros adeptos surgiram especialmente na capital paulista, onde a comunidade japonesa já vinha familiarizando os habitantes com o consumo de peixe cru. Não demorou para que isso despertasse o interesse de chefs estrelados, como Alex Atala, Carla Pernambuco e Bel Coelho. E continua conquistando o paladar de um número cada vez maior de adeptos.

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